sábado, 21 de março de 2009

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Vem, Noite antiquíssima e idêntica


                I
......
Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio. Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.
Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas.
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo.
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora.
Na distância subitamente impossível de percorrer.
Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela.
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto.
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma.
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.
Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena.
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.
Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes.
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos.
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde — quem sabe? — Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...
Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-o misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!
Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé antepé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.
Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,
A lua começa a ser real.

Álvaro de Campos - Dois Excertos de "Odes" (Fins de duas odes, naturalmente)

Vem, Vulva antiquíssima e idêntica


Fernando Pessoa explicado às criancinhas
naturais e estrangeiras, por M.C.V.

Vem, Vulva antiquíssima e idêntica
Vulva Rainha nascida destronada morta
Vulva igual por dentro ao silêncio, Vulva
Com teus pentelhos lantejoulas rápidas
No teu Olho franjado de infinito.
        
Vem mortamente
Vem pesadamente
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas,
Ao teu lado, vem
E traz as camas longínquas para o pé das uréteras próximas
Faz da montanha um bloco só do teu corpo
Funde na regra tua todas as águas que vejo
Todos os nervos com que és escura por dentro
Todas as luzes brancas como noivo e noiva
E deixa só um mu, e outro mu, e outro
Na distância imprecisa e subitamente perturbadora
Na distância subitamente impossível de percorrer.
        
Nossa Senhora
Das coisas imposssíveis que procuramos em vão
E que doem por sabermos que só assim as teremos,
No espelho baço do aposento não nosso,
Madre do Deus das terras infelizes
Mater Dolorosa das angústias dos tímidos
Sancta Virgo Virginum das pernas dos prisioneiros
Turris Eburnea dos olhos dos paneleiros
Sancta Dei Generectrix dos filhos das meretrizes
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo,
Apanha-me do meu pénis, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte
Onde estão as cidades que eu tanto amei,
Outra folha de mim lança para o Sul
Onde estão os mares que os Navegadores abriram,
Outra folha de mim atira ao Ocidente
Onde o demónio da acção cobriu tudo
Sem deixar sombra onde eu nasça
Ou possa, sequer, descansar
Reclinando a cabeça em minha própria nação,
E o resto, o resto de mim atira ao Oriente,
Ao Oriente de onde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos,
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde — quem sabe? — Çiva-Parvati talvez
    realmente viva,
Onde Ardhanarishwar talvez exista realmente
e mandando tudo...

Mário Cesariny de Vasconcelos
         ________________________________________       
"Vem, Vulva antiquíssima e idêntica” é uma reescrita em forma de paródia do conhecido poema de Álvaro de Campos "Vem, Noite, antiquíssima e idêntica", datado de 30/6/1914 e publicado na Revista de Portugal, nº 4, Julho de 1938, anterior ao da Ática.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Diamor



I

É de cravo. Toque de pétala em minha boca
a tua língua redonda. Talo cálido
macio de ponta subtil de tamanho.
Olhos para cima ardendo incessante de cabelos
girassóis gémeos maduros no corpo do meio.
Punhal de luz de permeio
e no cabo da lâmina a pérola do umbigo.
Algas escorrendo ausência de Tejo nos dedos.
Cabo do mundo dos meus fascínios
dos meus delírios bem fundo que digo?
E o lugar dos joelhos hangares paralelos
insuspeitos de viagens rotuladas.
Ó gulas que as zonas do apetite jogam os dados
com pazes e êxtases estudados.

Outrora disseste rei terei
ó se minha arte tal fosse
porque leal e amor sou
homoalma increver-te no cosmos.
Minha mulher. O teu sexo de colher.
De sabor torrencialmente minha.

Beber-te moderno sumo do fruto.
Abundante por espasmos
de enormes segredos menstruados.
Sorver a plenos pulmões teu hálito mais secreto.
Esvair-me de concreto.
Ajoelho-me semeador ante a ternura
do cálice por ti aberto.
Desfoca ao longe a bebida
de já não vê-la de tão perto...
E o talhe de teus rins muita de Florença.

Pés de mármore de si rotativos a Sirius.
Ventre que em movimento flutua.
Fartura da lua.
Nádegas porcelares, carnagens lótus.
Aprumo de haste bambu ao Sol e a Marte.
Sexo de mim cação em teu sexo tubarão...
e o teu clito perdoa que não aparece!

Ó dor! Eis-te amor. Meu amor.
Nem Vénus. Nem de Cnido nem de Milo.
Muito branca muito morena e quente.
Muito querida e nua viva de frente.

II

É neste indecisão de folhas caindo caindo
decisão de altas artes plantas plantas
a boca me ardendo nas tuas mamas tantas
soltando-se em alces fugindo fugindo.
As horas sendo em nossos cabelos.
Uma a uma. Um a um. Do tempo a Tagus.
Meus olhos égides tristezas minhas
que as não desejo aos relâmpagos.

Aqui a solução é não sabermos nadar
me chamas irmã dos espaços morenos.
Entre ondas de carne e unhas seremos
medo cisma orgasmo de podermos voar.

Dórdio Guimarães
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Dórdio Leal Guimarães (Porto, 10 de Março de 1938 - 2 de Julho de 1997).  Poeta, cineasta, ficcionista e jornalista. Filho do realizador Manuel Guimarães.
Com uma vasta obra literária publicada, durante cerca de 30 anos foi o marido e companheiro inseparável de Natália Correia a quem dedicou o livro «Cynthia e a Absoluta Viagem».Dórdio Guimarães, enquanto cineasta, dirigiu em 1978 a série televisiva «Marânus»,um retrato da vida e obra de Teixeira de Pascoaes, e, um ano mais tarde, realizou a longa-metragem «SantoAntero», uma biografia de Antero de Quental.
No seu testamento deixou à Biblioteca Nacional de Lisboa todos os manuscritos de Natália Correia e os seus, bem como o acervo de fotografias e vídeos. Por outro lado, deixou o recheio e a biblioteca (cerca de 40 mil livros) existentes na sua casa de Lisboa, ao Governo Regional dos Açores.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Os Vivos Ouvem Poucamente


Os vivos ouvem poucamente. As plantas, 
como o elemento aquático domina, 
são dadas à conversa. A menor brisa abala 
a urna de concórdia estremecida 
que, assim, sensível, se derrama 
e é solidão solícita. 
Os vivos não ouvem nada. 
Mas, havendo acedido a essa malícia 
de experiência cândida, 
os mortos deixam que o ouvido siga 
o fluvial diálogo das plantas 
umas com outras e todas com a brisa. 
Melhor ainda. Quando, nas noites cálidas, 
as plantas se sentem mais sozinhas, 
os mortos brincam à imitação das águas 
inventando palavras de consonâncias líquidas. 
E esse amoroso cuidado de palavras 
a urna de concórdia vegetal espevita 
até que, a horas altas, 
a noite, os mortos e as plantas 
caiam no sono duma luz solícita. 

Fernando Echevarría, in "Sobre os Mortos"

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Se os poetas fossem menos patetas

Se os poetas fossem menos patetas 
E se fossem menos preguiçosos 
Faziam toda a gente feliz 
Para poderem tratar em paz
Dos seus sofrimentos literários
Construíam casas amarelas
Com grandes jardins à frente
E árvores cheias de zaves
De mirliflautas e lizores
De melfiarufos e toutiverdes
De plumuchos e picapães
E pequenos corvos vermelhos
Que soubessem ler a sina
Havia grandes repuxos
Com luzes por dentro
Havia duzentos peixes
Desde o crusco ao ramussão
Da libela ao papamula
Da orfia ao rara curul
E da alvela ao canissão
Havia um ar novo
Perfumado do odor das folhas
Comia-se quando se quisesse
E trabalhava-se sem pressa
A construir escadarias
De formas antes nunca vistas
Com madeiras raiadas de lilás
Lisas como ela sob os dedos

Mas os poetas são uns patetas
Escrevem para começar
Em vez de se porem a trabalhar
E isso traz-lhes um remorso
Que conservam até à morte
Encantados de ter sofrido tanto
Dedicam-lhes grandes discursos
E são esquecidos num dia
Mas se trabalhassem mais
Só seriam esquecidos em dois

Boris Vian, in Não Queria Patear
Tradução de Irene Freire Nunes / Fernando Cabral Martins

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Lamento para a língua portuguesa

não és mais do que as outras, mas és nossa, 
e crescemos em ti. nem se imagina 
que alguma vez uma outra língua possa 
pôr-te incolor, ou inodora, insossa, 
ser remédio brutal, mera aspirina, 
ou tirar-nos de vez de alguma fossa, 
ou dar-nos vida nova e repentina. 
mas é o teu país que te destroça, 
o teu próprio país quer-te esquecer 
e a sua condição te contamina 
e no seu dia-a-dia te assassina. 
mostras por ti o que lhe vais fazer: 
vai-se por cá mingando e desistindo, 
e desde ti nos deitas a perder 
e fazes com que fuja o teu poder 
enquanto o mundo vai de nós fugindo: 
ruiu a casa que és do nosso ser 
e este anda por isso desavindo 
connosco, no sentir e no entender, 
mas sem que a desavença nos importe 
nós já falamos nem sequer fingindo 
que só ruínas vamos repetindo. 
talvez seja o processo ou o desnorte 
que mostra como é realidade 
a relação da língua com a morte, 
o nó que faz com ela e que entrecorte 
a corrente da vida na cidade. 
mais valia que fossem de outra sorte 
em cada um a força da vontade 
e tão filosofais melancolias 
nessa escusada busca da verdade, 
e que a ti nos prendesse melhor grade. 
bem que ao longo do tempo ensurdecias, 
nublando-se entre nós os teus cristais, 
e entre gentes remotas descobrias 
o que não eram notas tropicais 
mas coisas tuas que não tinhas mais, 
perdidas no enredar das nossas vias 
por desvairados, lúgubres sinais, 
mísera sorte, estranha condição, 
mas cá e lá do que eras tu te esvais, 
por ser combate de armas desiguais. 
matam-te a casa, a escola, a profissão, 
a técnica, a ciência, a propaganda, 
o discurso político, a paixão 
de estranhas novidades, a ciranda 
de violência alvar que não abranda 
entre rádios, jornais, televisão. 
e toda a gente o diz, mesmo essa que anda 
por tal degradação tão mais feliz 
que o repete por luxo e não comanda, 
com o bafo de hienas dos covis, 
mais que uma vela vã nos ventos panda 
cheia do podre cheiro a que tresanda. 
foste memória, música e matriz 
de um áspero combate: apreender 
e dominar o mundo e as mais subtis 
equações em que é igual a xis 
qualquer das dimensões do conhecer, 
dizer de amor e morte, e a quem quis 
e soube utilizar-te, do viver, 
do mais simples viver quotidiano, 
de ilusões e silêncios, desengano, 
sombras e luz, risadas e prazer 
e dor e sofrimento, e de ano a ano, 
passarem aves, ceifas, estações, 
o trabalho, o sossego, o tempo insano 
do sobressalto a vir a todo o pano, 
e bonanças também e tais razões 
que no mundo costumam suceder 
e deslumbram na só variedade 
de seu modo, lugar e qualidade, 
e coisas certas, inexactidões, 
venturas, infortúnios, cativeiros, 
e paisagens e luas e monções, 
e os caminhos da terra a percorrer, 
e arados, atrelagens e veleiros, 
pedacinhos de conchas, verde jade, 
doces luminescências e luzeiros, 
que podias dizer e desdizer 
no teu corpo de tempo e liberdade. 
agora que és refugo e cicatriz 
esperança nenhuma hás-de manter: 
o teu próprio domínio foi proscrito, 
laje de lousa gasta em que algum giz 
se esborratou informe em borrões vis. 
de assim acontecer, ficou-te o mito 
de haver milhões que te uivam triunfantes 
na raiva e na oração, no amor, no grito 
de desespero, mas foi noutro atrito 
que tu partiste até as próprias jantes 
nos estradões da história: estava escrito 
que iam desconjuntar-te os teus falantes 
na terra em que nasceste, eu acredito 
que te fizeram avaria grossa. 
não rodarás nas rotas como dantes, 
quer murmures, escrevas, fales, cantes, 
mas apesar de tudo ainda és nossa, 
e crescemos em ti. nem imaginas 
que alguma vez uma outra língua possa 
pôr-te incolor, ou inodora, insossa, 
ser remédio brutal, vãs aspirinas, 
ou tirar-nos de vez de alguma fossa, 
ou dar-nos vidas novas repentinas. 
enredada em vilezas, ódios, troça, 
no teu próprio país te contaminas 
e é dele essa miséria que te roça. 
mas com o que te resta me iluminas. 

Vasco Graça Moura, in Antologia dos Sessenta Anos