quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Os Vivos Ouvem Poucamente


Os vivos ouvem poucamente. As plantas, 
como o elemento aquático domina, 
são dadas à conversa. A menor brisa abala 
a urna de concórdia estremecida 
que, assim, sensível, se derrama 
e é solidão solícita. 
Os vivos não ouvem nada. 
Mas, havendo acedido a essa malícia 
de experiência cândida, 
os mortos deixam que o ouvido siga 
o fluvial diálogo das plantas 
umas com outras e todas com a brisa. 
Melhor ainda. Quando, nas noites cálidas, 
as plantas se sentem mais sozinhas, 
os mortos brincam à imitação das águas 
inventando palavras de consonâncias líquidas. 
E esse amoroso cuidado de palavras 
a urna de concórdia vegetal espevita 
até que, a horas altas, 
a noite, os mortos e as plantas 
caiam no sono duma luz solícita. 

Fernando Echevarría, in "Sobre os Mortos"

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Se os poetas fossem menos patetas

Se os poetas fossem menos patetas 
E se fossem menos preguiçosos 
Faziam toda a gente feliz 
Para poderem tratar em paz
Dos seus sofrimentos literários
Construíam casas amarelas
Com grandes jardins à frente
E árvores cheias de zaves
De mirliflautas e lizores
De melfiarufos e toutiverdes
De plumuchos e picapães
E pequenos corvos vermelhos
Que soubessem ler a sina
Havia grandes repuxos
Com luzes por dentro
Havia duzentos peixes
Desde o crusco ao ramussão
Da libela ao papamula
Da orfia ao rara curul
E da alvela ao canissão
Havia um ar novo
Perfumado do odor das folhas
Comia-se quando se quisesse
E trabalhava-se sem pressa
A construir escadarias
De formas antes nunca vistas
Com madeiras raiadas de lilás
Lisas como ela sob os dedos

Mas os poetas são uns patetas
Escrevem para começar
Em vez de se porem a trabalhar
E isso traz-lhes um remorso
Que conservam até à morte
Encantados de ter sofrido tanto
Dedicam-lhes grandes discursos
E são esquecidos num dia
Mas se trabalhassem mais
Só seriam esquecidos em dois

Boris Vian, in Não Queria Patear
Tradução de Irene Freire Nunes / Fernando Cabral Martins

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Lamento para a língua portuguesa

não és mais do que as outras, mas és nossa, 
e crescemos em ti. nem se imagina 
que alguma vez uma outra língua possa 
pôr-te incolor, ou inodora, insossa, 
ser remédio brutal, mera aspirina, 
ou tirar-nos de vez de alguma fossa, 
ou dar-nos vida nova e repentina. 
mas é o teu país que te destroça, 
o teu próprio país quer-te esquecer 
e a sua condição te contamina 
e no seu dia-a-dia te assassina. 
mostras por ti o que lhe vais fazer: 
vai-se por cá mingando e desistindo, 
e desde ti nos deitas a perder 
e fazes com que fuja o teu poder 
enquanto o mundo vai de nós fugindo: 
ruiu a casa que és do nosso ser 
e este anda por isso desavindo 
connosco, no sentir e no entender, 
mas sem que a desavença nos importe 
nós já falamos nem sequer fingindo 
que só ruínas vamos repetindo. 
talvez seja o processo ou o desnorte 
que mostra como é realidade 
a relação da língua com a morte, 
o nó que faz com ela e que entrecorte 
a corrente da vida na cidade. 
mais valia que fossem de outra sorte 
em cada um a força da vontade 
e tão filosofais melancolias 
nessa escusada busca da verdade, 
e que a ti nos prendesse melhor grade. 
bem que ao longo do tempo ensurdecias, 
nublando-se entre nós os teus cristais, 
e entre gentes remotas descobrias 
o que não eram notas tropicais 
mas coisas tuas que não tinhas mais, 
perdidas no enredar das nossas vias 
por desvairados, lúgubres sinais, 
mísera sorte, estranha condição, 
mas cá e lá do que eras tu te esvais, 
por ser combate de armas desiguais. 
matam-te a casa, a escola, a profissão, 
a técnica, a ciência, a propaganda, 
o discurso político, a paixão 
de estranhas novidades, a ciranda 
de violência alvar que não abranda 
entre rádios, jornais, televisão. 
e toda a gente o diz, mesmo essa que anda 
por tal degradação tão mais feliz 
que o repete por luxo e não comanda, 
com o bafo de hienas dos covis, 
mais que uma vela vã nos ventos panda 
cheia do podre cheiro a que tresanda. 
foste memória, música e matriz 
de um áspero combate: apreender 
e dominar o mundo e as mais subtis 
equações em que é igual a xis 
qualquer das dimensões do conhecer, 
dizer de amor e morte, e a quem quis 
e soube utilizar-te, do viver, 
do mais simples viver quotidiano, 
de ilusões e silêncios, desengano, 
sombras e luz, risadas e prazer 
e dor e sofrimento, e de ano a ano, 
passarem aves, ceifas, estações, 
o trabalho, o sossego, o tempo insano 
do sobressalto a vir a todo o pano, 
e bonanças também e tais razões 
que no mundo costumam suceder 
e deslumbram na só variedade 
de seu modo, lugar e qualidade, 
e coisas certas, inexactidões, 
venturas, infortúnios, cativeiros, 
e paisagens e luas e monções, 
e os caminhos da terra a percorrer, 
e arados, atrelagens e veleiros, 
pedacinhos de conchas, verde jade, 
doces luminescências e luzeiros, 
que podias dizer e desdizer 
no teu corpo de tempo e liberdade. 
agora que és refugo e cicatriz 
esperança nenhuma hás-de manter: 
o teu próprio domínio foi proscrito, 
laje de lousa gasta em que algum giz 
se esborratou informe em borrões vis. 
de assim acontecer, ficou-te o mito 
de haver milhões que te uivam triunfantes 
na raiva e na oração, no amor, no grito 
de desespero, mas foi noutro atrito 
que tu partiste até as próprias jantes 
nos estradões da história: estava escrito 
que iam desconjuntar-te os teus falantes 
na terra em que nasceste, eu acredito 
que te fizeram avaria grossa. 
não rodarás nas rotas como dantes, 
quer murmures, escrevas, fales, cantes, 
mas apesar de tudo ainda és nossa, 
e crescemos em ti. nem imaginas 
que alguma vez uma outra língua possa 
pôr-te incolor, ou inodora, insossa, 
ser remédio brutal, vãs aspirinas, 
ou tirar-nos de vez de alguma fossa, 
ou dar-nos vidas novas repentinas. 
enredada em vilezas, ódios, troça, 
no teu próprio país te contaminas 
e é dele essa miséria que te roça. 
mas com o que te resta me iluminas. 

Vasco Graça Moura, in Antologia dos Sessenta Anos

Hino ao Tejo


Ó Tejo das asas largas
Pássaro lindo que se ouve em todas as ruas de Lisboa
Ó coroa duma cidade maravilhosa
Ó manto célebre nas cortes do mundo inteiro
Faixa antiga duma cidade mourisca
Fénix astro caravela líquida
Silêncio marulhante das coisas que vão acontecer
Deslizar sem desastres sem fado sem presságio
Tu ó majestoso ó Rei ó simplicidade das coisas belíssimas
Nas tardes em que o sol te queima passo junto de ti
E chamo-te numa voz sem palavras marejada de lágrimas
Meu irmão mais velho

Alberto de Lacerda

sábado, 24 de janeiro de 2009

Concerto para cravo


Carlos Seixas (imagens da Gare do Oriente, Lisboa)

José António Carlos Seixas, compositor e organista português. Nasceu em Coimbra a 11 de Junho de 1704, morreu em Lisboa a 25 de Agosto de 1742

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Os Estatutos do Homem


(Acto Institucional Permanente)

Artigo I

Fica decretado que agora vale a verdade.
Agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II

Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III

Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV

Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V

Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI

Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo
gosto de aurora.

Artigo VII

Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII

Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX

Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X

Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.

Artigo XI

Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII

Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII

Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final

Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

Thiago de Mello
________________________________________
Amadeu Thiago de Mello (Barreirinha, 30 de Março de 1926) é um poeta brasileiro, natural do estado do Amazonas, onde é um dos poetas mais influentes e respeitados, reconhecido como um ícone da literatura regional.
Tem obras traduzidas para mais de trinta idiomas.
Preso durante a ditadura, exilou-se no Chile, encontrando em Pablo Neruda um amigo e companheiro por toda a vida. Um traduziu a obra do outro e Neruda escreveu ensaios sobre o amigo.
No exílio, morou na Argentina, Chile, Portugal, França, Alemanha. Com o fim do regime militar, voltou à sua pequena cidade natal, Barreirinha.

Nevoeiro


Quem poderá saber que estranha bruma
Brotou caladamente em minha volta
Pra que eu perdesse as horas uma a uma
Sem um gesto, sem gritos, sem revolta.

Quem poderá saber que estranhos laços
E que sabor de morte lento e amargo
Sugaram todo o sangue dos meus braços --
O sangue que era sede do mar largo.

Quem poderá saber em que respostas
Se quebrou o subir do meu pedido
Para que eu bebesse imagens decompostas
À luz dum pôr de sol enlouquecido.

Sophia de Mello Breyner - Dia do Mar

Liberdade


Nos meus cadernos de escola
Sobre a carteira nas árvores
Sobre a neve sobre a areia
Eu escrevo o teu nome
 
Em todas as páginas lidas
Em todas as páginas em branco
No papel na pedra ou na cinza
Eu escrevo o teu nome
 
Sobre as imagens douradas
Sobre as armas dos guerreiros
Sobre a coroa dos reis
Eu escrevo o teu nome
 
Na selva e no deserto
Sobre os ninhos sobre as giestas
Nos ecos da minha infância
Eu escrevo o teu nome
 
Nas maravilhas das noites
No pão branco das jornadas
Nas estações de noivado
Eu escrevo o teu nome
 
Nos fiapos de azul-celeste
No imóvel disco solar
No lago da lua vibrante
Eu escrevo o teu nome
 
Nos campos nos horizontes
Nas asas dos passarinhos
Sobre os moinhos de sombras
Eu escrevo o teu nome
 
Em cada sopro de aurora
Sobre o mar sobre os navios
Na insensatez das montanhas
Eu escrevo o teu nome
 
Nas nuvens soltas e revoltas
Na tormenta transpirada
Na chuva insistente e tola
Eu escrevo o teu nome
 
Sobre as formas cintilantes
Nas campânulas de cores
Por sobre a verdade física
Eu escrevo o teu nome
 
Sobre as veredas despertas
Nos caminhos desdobrados
Sobre as praças transbordantes
Eu escrevo o teu nome
 
Na lâmpada que se acende
Na lâmpada que se apaga
Nas casas cheias de gente
Eu escrevo o teu nome
 
No fruto cortado em dois
O do espelho e o do meu quarto
Na concha do leito vazio
Eu escrevo o teu nome
 
No meu cão terno e guloso
Mas sempre de orelha em pé
E patas destrambelhadas
Eu escrevo o teu nome
 
Na soleira da minha porta
Nos objectos familiares
Nas chamas do lume sagrado
Eu escrevo o teu nome
 
Em toda a carne acordada
Na fronte dos meus amigos
Em cada mão que me afaga
Eu escrevo o teu nome
 
Na vidraça das surpresas
Sobre os lábios expectantes
Muito acima do silêncio
Eu escrevo o teu nome
 
Nos refúgios descobertos
Nos meus faróis em ruinas
Nas paredes do meu tédio
Eu escrevo o teu nome
 
Sobre a ausência do desejo
Sobre a solidão desnuda
Nos descaminhos da morte
Eu escrevo o teu nome
 
No retorno da saúde
No risco que se correu
Na esperança sem lembrança
Eu escrevo o teu nome
 
E pelo poder de um nome
Começo a viver de facto
Nasci para te conhecer
E te chamar
 
liberdade

Paul Éluard

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Serenidade És Minha


À Memória de Fernando Pessoa

Vem, serenidade!
Vem cobrir a longa
fadiga dos homens,
este antigo desejo de nunca ser feliz
a não ser pela dupla humidade das bocas.  

Vem, serenidade!
Faz com que os beijos cheguem à altura dos ombros 
e com que os ombros subam à altura dos lábios, 
faz com que os lábios cheguem à altura dos beijos.
Carrega para a cama dos desempregados 
todas as coisas verdes, todas as coisas vis 
fechadas no cofre das águas: 
os corais, as anémonas, os monstros sublunares, 
as algas, porque um fio de prata lhes enfeita os cabelos.

Vem, serenidade,
com o país veloz e virginal das ondas,
com o martírio leve dos amantes sem Deus,
com o cheiro sensual das pernas no cinema,
com o vinho e as uvas e o frémito das virgens,
com o macio ventre das mulheres violadas,
com os filhos que os pais amaldiçoam,
com as lanternas postas à beira dos abismos,
e os segredos e os ninhos e o feno
e as procissões sem padre, sem anjos e, contudo
com Deus molhando os olhos
e as esperanças dos pobres.

Vem, serenidade,
com a paz e a guerra 
derrubar as selvagens 
florestas do instinto.

Vem, e levanta
palácios na sombra.
Tem a paciência de quem deixa entre os lábios
um espaço absoluto.

Vem, e desponta,
oriunda dos mares,
orquídea fresca das noites vagabundas, 
serena espécie de contentamento, 
surpresa, plenitude.

Vem dos prédios sem almas e sem luzes, 
dos números irreais de todas as semanas, 
dos caixeiros sem cor e sem família, 
das flores que rebentam nas mãos dos namorados 
dos bancos que os jardins afogam no silêncio,
das jarras que os marujos trazem sempre da China, 
dos aventais vermelhos com que as mulheres esperam 
a chegada da força e da vertigem.

Vem, serenidade,
e põe no peito sujo dos ladrões 
a cruz dos crimes sem cadeia, 
põe na boca dos pobres o pão que eles precisam, 
põe nos olhos dos cegos a luz que lhes pertence.

Vem nos bicos dos pés para junto dos berços, 
para junto das campas dos jovens que morreram, 
para junto das artérias que servem
de campo para o trigo, de mar para os navios.

Vem, serenidade!
E do salgado bojo das tuas naus felizes 
despeja a confiança,
a grande confiança.
Grande como os teus braços, 
grande serenidade!

E põe teus pés na terra, 
e deixa que outras vozes 
se comovam contigo 
no Outono, no Inverno, 
no Verão, na Primavera.

Vem, serenidade,
para que se não fale 
nem da paz nem da guerra nem de Deus, 
porque foi tudo junto 
e guardado e levado
para a casa dos homens.

Vem, serenidade,
vem com a madrugada,
vem com os anjos de ouro que fugiram da Lua, 
com as nuvens que proíbem o céu, 
vem com o nevoeiro.

Vem com as meretrizes que chamam da janela, 
o volume dos corpos saciados na cama, 
as mil aparições do amor nas esquinas, 
as dívidas que os pais nos pagam em segredo, 
as costas que os marinheiros levantam
quando arrastam o mar pelas ruas.

Vem, serenidade,
e lembra-te de nós,
que te esperamos há séculos sempre no mesmo sítio,
um sítio aonde a morte tem todos os direitos.

Lembra-te da miséria dourada dos meus versos, 
desta roupa de imagens que me cobre 
o corpo silencioso,
das noites que passei perseguindo uma estrela, 
do hálito, da fome, da doença, do crime, 
com que dou vida e morte 
a mim próprio e aos outros.

Vem, serenidade,
e acaba com o vício
de plantar roseiras no duro chão dos dias,
vício de beber água
com o copo do vinho milagroso do sangue.

Vem, serenidade,
não apagues ainda
a lâmpada que forra
os cantos do meu quarto, 
o papel com que embrulho meus rios de aventura 
em que vai navegando o futuro.

Vem, serenidade!
E pousa, mais serena que as mãos de minha Mãe, 
mais húmida que a pele marítima do cais, 
mais branca que o soluço, o silêncio, a origem, 
mais livre que uma ave em seu vôo, 
mais branda que a grávida brandura do papel em que escrevo,
mais humana e alegre que o sorriso das noivas,
do que a voz dos amigos, do que o sol nas searas.

Vem, serenidade,
para perto de mim e para nunca.


De manhã, quando as carroças de hortaliça 
chiam por dentro da lisa e sonolenta 
tarefa terminada,
quando um ramo de flores matinais 
é uma ofensa ao nosso limitado horizonte, 
quando os astros entregam ao carteiro surpreendido 
mais um postal da esperança enigmática, 
quando os tacões furados pelos relógios podres, 
pelas tardes por trás das grades e dos muros, 
pelas convencionais visitas aos enfermos, 
formam, em densos ângulos de humano desespero, 
uma nuvem que aumenta a vã periferia 
que rodeia a cidade,
é então que eu te peço como quem pede amor:
Vem, serenidade!

Com a medalha, os gestos e os teus olhos azuis,
vem, serenidade!
Com as horas maiúsculas do cio,
com os músculos inchados da preguiça,
vem, serenidade!

Vem, com o perturbante mistério dos cabelos, 
o riso que não é da boca nem dos dentes 
mas que se espalha, inteiro, 
num corpo alucinado de bandeira.

Vem, serenidade,
antes que os passos da noite vigilante 
arranquem as primeiras unhas da madrugada, 
antes que as ruas cheias de corações de gás 
se percam no fantástico cenário da cidade,
antes que, nos pés dormentes dos pedintes, 
a cólera lhes acenda brasas nos cinco dedos, 
a revolta semeie florestas de gritos 
e a raiva vá partir as amarras diárias.

Vem, serenidade,
leva-me num vagão de mercadorias, 
num convés de algodão e borracha e madeira, 
na hélice emigrante, na tábua azul dos peixes, 
na carnívora concha do sono.

Leva-me para longe
deste bíblico espaço,
desta confusão abúlica dos mitos, 
deste enorme pulmão de silêncio e vergonha.  
Longe das sentinelas de mármore 
que exigem passaporte a quem passa.

A bordo, no porão,
conversando com velhos tripulantes descalços, 
crianças criminosas fugidas à policia, 
moços contrabandistas, negociantes mouros, 
emigrados políticos que vão 
em busca da perdida liberdade,

Vem, serenidade,
e leva-me contigo.
Com ciganos comendo amoras e limões,
e música de harmónio, e ciúme, e vinganças,
e subindo nos ares o livre e musical
facho rubro que une os seios da terra ao Sol.

Vem, serenidade!
Os comboios nos esperam.
Há famílias inteiras com o jantar na mesa, 
aguardando que batam, que empurrem, que irrompam 
pela porta levíssima,
e que a porta se abra e por ela se entornem 
os frutos e a justiça.

Serenidade, eu rezo:
Acorda minha Mãe quando ela dorme, 
quando ela tem no rosto a solidão completa 
de quem passou a noite perguntando por mim, 
de quem perdeu de vista o meu destino.

Ajuda-me a cumprir a missão de poeta, 
a confundir, numa só e lúcida claridade, 
a palavra esquecida no coração do homem.

Vem, serenidade,
e absolve os vencidos, 
regulariza o trânsito cardíaco dos sonhos 
e dá-lhes nomes novos, 
novos ventos, novos portos, novos pulsos.

E recorda comigo o barulho das ondas, 
as mentiras da fé, os amigos medrosos, 
os assombros da índia imaginada, 
o espanto aprendiz da nossa fala, 
ainda nossa, ainda bela, ainda livre 
destes montes altíssimos que tapam 
as veias ao Oceano.

Vem, serenidade,
e faz que não fiquemos doentes, só de ver
que a beleza não nasce dia a dia na terra.

E reúne os pedaços dos espelhos partidos,
e não cedas demais ao vislumbre de vermos
a nossa idade exacta
outra vez paralela ao percurso dos pássaros.

E dá asas ao peso
da melancolia,
e põe ordem no caos e carne nos espectros,
e ensina aos suícidas a volúpia do baile,
e enfeitiça os dois corpos quando eles se apertarem,
e não apagues nunca o fogo que os consome.
o impulso que os coloca, nus e iluminados,
no topo das montanhas, no extremo dos mastros
na chaminé do sangue.

Serenidade, assiste
à multiplicação original do Mundo:
Um manto terníssimo de espuma,
um ninho de corais, de limos, de cabelos, 
um universo de algas despidas e retrácteis, 
um polvo de ternura deliciosa e fresca.

Vem, e compartilha
das mais simples paixões, 
do jogo que jogamos sem parceiro, 
dos humilhantes nós que a garganta irradia, 
da suspeita violenta, do inesperado abrigo.

Vem, com teu frio de esquecimento, 
com tua alucinante e alucinada mão, 
e põe, no religioso ofício do poema, 
a alegria, a fé, os milagres, a luz!

Vem, e defende-me
da traição dos encontros, 
do engano na presença de Aquele 
cuja palavra é silêncio, 
cujo corpo é de ar, 
cujo amor é demais 
absoluto e eterno 
para ser meu, que o amo.

Para sempre irreal, 
para sempre obscena, 
para sempre inocente, 
Serenidade, és minha.

Raul de Carvalho