domingo, 8 de fevereiro de 2009

Vem, Vulva antiquíssima e idêntica


Fernando Pessoa explicado às criancinhas
naturais e estrangeiras, por M.C.V.

Vem, Vulva antiquíssima e idêntica
Vulva Rainha nascida destronada morta
Vulva igual por dentro ao silêncio, Vulva
Com teus pentelhos lantejoulas rápidas
No teu Olho franjado de infinito.
        
Vem mortamente
Vem pesadamente
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas,
Ao teu lado, vem
E traz as camas longínquas para o pé das uréteras próximas
Faz da montanha um bloco só do teu corpo
Funde na regra tua todas as águas que vejo
Todos os nervos com que és escura por dentro
Todas as luzes brancas como noivo e noiva
E deixa só um mu, e outro mu, e outro
Na distância imprecisa e subitamente perturbadora
Na distância subitamente impossível de percorrer.
        
Nossa Senhora
Das coisas imposssíveis que procuramos em vão
E que doem por sabermos que só assim as teremos,
No espelho baço do aposento não nosso,
Madre do Deus das terras infelizes
Mater Dolorosa das angústias dos tímidos
Sancta Virgo Virginum das pernas dos prisioneiros
Turris Eburnea dos olhos dos paneleiros
Sancta Dei Generectrix dos filhos das meretrizes
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo,
Apanha-me do meu pénis, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte
Onde estão as cidades que eu tanto amei,
Outra folha de mim lança para o Sul
Onde estão os mares que os Navegadores abriram,
Outra folha de mim atira ao Ocidente
Onde o demónio da acção cobriu tudo
Sem deixar sombra onde eu nasça
Ou possa, sequer, descansar
Reclinando a cabeça em minha própria nação,
E o resto, o resto de mim atira ao Oriente,
Ao Oriente de onde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos,
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde — quem sabe? — Çiva-Parvati talvez
    realmente viva,
Onde Ardhanarishwar talvez exista realmente
e mandando tudo...

Mário Cesariny de Vasconcelos
         ________________________________________       
"Vem, Vulva antiquíssima e idêntica” é uma reescrita em forma de paródia do conhecido poema de Álvaro de Campos "Vem, Noite, antiquíssima e idêntica", datado de 30/6/1914 e publicado na Revista de Portugal, nº 4, Julho de 1938, anterior ao da Ática.

Sem comentários:

Enviar um comentário